Tuesday, May 3, 2011

Rumo ao Norte! "Pé de vento" e "Dolce Vita"








Caro Joao Costa!

Já estou de volta ao trabalho, cansado e um pouco dorido depois de 3 dias de mar. Correu tudo bem, tivemos que alterar o plano de viagem e acabamos por dormir 2 noites na enseada do Catumbo. Na sexta faltou-nos o vento necessário para ir mais para Norte, chegamos ao Kapulo e, como o Dolce Vita acabou por não sair com o Pé de Vento na sexta a noite, decidi regressar e ir ao seu encontro. Pernoitamos no Catumbo.

Aqui vão algumas fotos da “viagem” com as historias de bordo escritas pelo Andrew, que revelou grande capacidade literária!

Saída de Barco dia 29 de Abril do ano da graça do senhor de 2011

11.30 - No principio da noite de um dia que viu nascer uma futura rainha de Inglaterra e em que a ilha dos grandes piratas gerou mais um monarca 4, quatro insatisfeitos, inconformados, inconsequentes e intransigentes filhos de um Deus menor, daqueles pequenos tipo Tamagochi decidiram que a vida que levavam era secundária terciária precária e por conta de outrem e então, ao tocar as doze badaladas que nem cinderelas de havaianas partiram rumo à Muserra, terra virgem, ou pelo menos assim estavam convictos estes quatro piratas de tasca, à procura de um lugar fresco, verde e virgem de ideias, e onde, acreditavam eles, o FMI ainda não tivesses chegado...

O barco, o inefável Pé de Vento, conformou-se, o único que ainda mantinha algum do seu pudor a recordar os grandes piratas que deixaram nome à volta do mundo em baías e enseadas e, à primeira chamada "destes" marinheiros levantou âncora e lançou-se ao mar. Algo confuso e envergonhado a principio com os gritos de bombordo e estibordo, que por falta de compreensão lá se trocaram por direita e esquerda, não se fez rogado e enfrentou a escuridão da meia noite sem luz desviando-se de barcos encalhados na baia, casinos que com as suas luzes inundavam a penumbra das suas velas e dos próprios marinheiros que teimavam em desdizer a sabedoria intemporal do seu velho e sábio casco...

Estoicamente resistiu e por momentos houve até quem confessasse ter escutado um sussurro a invocar o regresso dos grandes que outrora atravessaram este mar que transportavam no seu passaporte os nomes destas baias e enseadas... Drake, oh drake, my kingdom for a drake...

Dia 30

01.30 - Duas horas depois, parece que a tripulação encontrou a sua harmonia, acalmou-se o mar e acalmaram-se as vozes introduzindo uma nova etapa nesta nossa viagem. Entramos numa era mais oriental e zen, de jardins de jasmim e orientação pelas estrelas, tarefa destinada ao nosso ancião (que não o é mas que guarda a insígnia atribuída pela experiência num barco ocupado exclusivamente pelos filhos de uma geração que tomou lsd e queimou os soutiens sem saber muito bem porquê).

Dizem uns que somos inconscientes mas foi a partir da formação da consciência que começamos a lutar por esse regresso, à procura do caminho para casa, das chaves da porta das traseiras e o voltar a viver as aventuras que vivemos no nosso quintal, sujos de terra em que os berros surdos dos nossos progenitores apenas vinham a acrescentar uma componente de ainda maior perigo às nossas viagens. Hoje assumimos essa inconsciência de peito aberto (apetecia-me dizer de pau feito mas a censura própria é ainda pior que a outra), idiotas com o olhar posto num escuro do qual não percebemos nada mas que procuramos explicar com doutoral sapiência enquanto viajamos, viajamos, viajamos... Os outros de quem vos falei no início deste diário fazia essas viagens à procura de algo novo hoje fazemo-las à procura de nós próprios...

Dia 30. 08.00 Ao acordar o homem do leme informou-nos que o vento tinha caído e que tínhamos avançado pouco durante a noite. 6 horas uma média de 3 nós atrasou-nos consideravelmente e neste momento ponderamos seriamente a alteração de rota para outra mais curta.

Instalada alguma frustração que apenas é compensada pelo silêncio e por aquele embalo do mar decidimos tomar o pequeno almoço na esperança de retemperar forças. O nosso capitão brindou-nos com queijo presidente, umas belas fatias de presunto de Parma e outros enchidos e fumados igualmente saborosos.

Já refeitos da falta de vento e quando apenas pensávamos na digestão do "presidente" fomos agraciados com a presença de uma escola de mais de uma centena de golfinhos... Acompanharam-nos durante quase vinte minutos à proa do barco, exibiram-se com saltos e piruetas e às tantas foram-se embora porque, ao contrário de alguns, até para os golfinhos, a vaidade tem limites...

12.00 Definitivamente entramos em modo Zen. A previsão de chegada à Muserra parecíamos mais optimistas era exactamente este meio dia em que nos encontramos. Mas nem o cepticismo valente de alguns como eu (que acreditava que nunca chegaríamos antes das 2) fez prever a total falta de vento pois encontramo-nos neste momento ainda a dez/doze horas do nosso destino.

O mundo em câmara lenta tem a sua graça quando essa contemplação é feita por escolha... Comparo esta marcha lenta com a outra diária do transito em Luanda. Esta apenas com um cenário de um azul imutável a outra cheia de cor e movimento, mas e apesar de tudo, esta tem uma graciosidade que a outra perde pelo stress que causa.

Ponderamos alterar a nossa rota devido à falta de vento. E agora surge nos outro dilema. Saiu hoje ao nosso encontro o Dolce Vita, embarcação com uma tripulação de agua doce. Claro que, por preguiça, esses senhores arrancaram a motor de Luanda. Neste vosso Pé de Vento a tripulação foge da palavra motor como o diabo da cruz. Mas voltando, mesmo com motor, a simples suposição que o Dolce Vita chegue onde quer que seja antes do Pé de Vento é, no mínimo, insultuoso e sente-se esse mal estar na tripulação. O nosso comandante sobe desce caça e folga num frenesim com o olhar posto no horizonte e sem sequer olhar para trás pois, em cada vulto que avista imagina o Dolce Vita e o seu Capitão à proa lançando o seu riso cavernoso...

16.30 A pessoa que vos escreve neste diário é outra, aliás, desde a última entrada neste diário que toda a tripulação é outra. A nossa história mudou, transfigurou-se, entramos na toca do coelho da Alice e tudo o que era até agora deixou de ser. Senão vejamos, às 13.00 almoçamos uns chouriços e uma picanha cozinhadas por este vosso escriba virado cozinheiro. E por falar em virar os cheiros do chouriço fizeram com que o Pimentel virasse, ele também, o barco e virasse também um verde osga que só há cerca de meia hora e com um xanax no bucho é que começou a voltar às suas cores originais.

Agora, como eu vos dizia, nada é o que parece, eu deitei me por meia hora e quando me deitei íamos rumo ao Norte. Ao acordar vi a terra do lado errado do barco. Estamos em direcção a sudeste, à Ponta do Catumbo com uma chegada prevista para o final da tarde. Eu acordei com a espinha de um atum a meu lado, brincadeira digna do gato das riscas da Alice, mas foi mesmo graçola do nosso capitão. Mas é como vos digo, caros leitores, apesar do salto dentro da toca do coelho, atingimos os 5,5 nós, e com isso uma nova moral. O barco anda, a Natibel tira fotos, o Pimentel recupera a cor e eu escrevo... Estamos bem! Com as ideias megalómanas da Muserra definitivamente para trás das costas a tripulação ganhou nova vida com novos ventos e novos destinos, novos objectivos e um belo atum à espera do seu fim na grelha após a nossa chegada ao Catumbo.

19.00 Assim que anoiteceu chegamos ao Catumbo e ancoramos já de noite. A moral continuava alta. Celebrou-se a chegada com gin tónicos debaixo de uma vela anti mosquito enquanto se esperava a chegada do Dolce Vita. Pelas 22.00 avistamos ao longe a dar a curva pela falésia uma luz que desde então tem vindo a ficar cada vez mais forte. As 20.15 tentamos estabelecer contacto via rádio mas do outro lado só recebíamos sons algo estranhas para este tipo de situações: "Estou fazendo amor com outra pessoa" "This is your captain speaking, please put on your seatbelts and this flight is no smoking flight" foram algumas das pérolas ouvidas pela rádio. Existem muitas histórias de demência e de gangrena causadas pelo mar, mas nunca esperei estar tão próximo de uma... O melhor nestas situações é fingir que não aconteceram pois a nós, com ou sem loucura, interessava-nos o forno do Dolce Vita para que pudéssemos jantar...

00.00 Foi nos preparado um belo repasto a bordo do Dolce Vita. Infelizmente dois dos nossos marinheiros recolheram-se antes de poder usufruir de tão belo repasto. O cansaço da viagem aliado ao descanso da chegada fez com que eles se fossem deitar mais cedo. O capitão e eu não só satisfizemos a gula como ainda a nossa veia de jogadores tendo ficado até esta hora a jogar King. Com alguma vergonha vos confesso que eu perdi para todos os outros jogadores, situação que não se coaduna com o passado nem o presente glorioso do Pé de Vento.

Dia 01 de Maio - Dia do trabalhador - Feriado até para os escribas mais dedicados.

Dia 02 de Maio

07.30 Alvorada. Após um belo dia de descanso no Catumbo com ostras, idas a terra e picanha regadas a cerveja, chá com rum e muito bom humor as duas tripulações estão prontas para iniciar o seu regresso. Após um pequeno almoço com tortilha espanhola vivemos o momento mais duro de toda esta viagem que foi o levantar da âncora. Duro não só fisicamente mas espiritualmente também pois significava o princípio do fim da nossa viagem. Às 09.15 já tínhamos as velas ao vento e o motor desligado e com bons ventos matinais fomos deslizando à velocidade de 4,5 a 5 nós rumo a Luanda...

O dia de regresso foi melhorando em termos de vento até à entrada na baía de Luanda onde atingimos o pico a 7 nós. Um belo dia de vela que contou ainda com duas cerejas em cima de um, já por si muito recheado, bolo. Uma bela Macoa de 7 kilos e um peixe serra que foram devidamente acondicionados e serão mais tarde degustados para recordar esta bela aventura marítima.

Over and Out...

Grande Abraço,
Franca