Manuel Martins "O Primeiro Portugues a fazer a volta ao mundo de barco a vela sozinho (Classe Solitario)
Remexendo bem lá no fundo do meu bornal de lembranças, rebusquei uns apontamentos perdidos, e que agora edito. São apontamentos que me trazem gratas recordações, acerca de amigos e momentos vividos.
Como diz a nossa juventude, bem na moda; foi assim:
Numa noite já bem entrada, quando na minha patrulha diária eu «recocava» as frequências de rádio, varrendo a banda dos 20 metros, como sempre costumava fazer, parei de rodar por uns segundos o "V.F.O" (variable frequency oscillator) do meu transceptor, sintonizando a frequência de 14,253 KHz na chamada "Roda dos Portugueses", aliás, até deveria ser chamada pela «roda dos angolanos» pois ela foi criada por radioamadores angolanos (bom mas isso será assunto para se falar mais tarde).
Com um sinal de arrebentar com o altifalante do meu receptor, recebia uma voz que me era familiar e que fazia muitos anos eu não escutada através das ondas radioeléctricas, essa voz, fazia uma chamada «alô África do Sul ZS1XP, aqui Portugal, CT1XI a chamar por Cape Town, chama por ZS1XP».
Automaticamente os meus pensamentos activaram o meu sistema nervoso e produzia-se adrenalina que acelerou os meus pensamentos e as minhas emoções, percorrendo o meu
corpo, porque foi com muita e sentida emoção que respondi a um amigo de Angola dos anos 1970, respondia-lhe agora, ao fim de tantos anos, tinham passado cerca de 20 anos esta era a voz do meu amigo Mariano, o ex.CR6XI.
Prontamente respondi a essa estação de Portugal, e disse: alô CT1XI, aqui África do Sul, ZS1XP, a responder de Cape Town, como me recebe, escuto…
Foi com a voz a tremer de emoção que quando ele passou da posição de transmissão, para a de recepção, que eu ali lhe respondia com a calma de um operador veterano, um «sábio membro do S.A.C», uma sigla que ambos conhecíamos dos Nosso tempos de Angola, e que representava uma imensa cumplicidade de ambos e de outros amigos, alguns entretanto falecidos, e que quer dizer Sierra Alfa Charlie, ou «só me apetece é chorar», uma expressão codificada através do alfabeto fonético, que referia tristeza pelas coisas más e menos próprias que então se faziam e por isso nos mereciam total desaprovação, e ao dizê-lo pela rádio, ninguém mais se apercebia que se criticavam coisas, situações, sociais e políticas, para que não se apercebessem do nosso descontentamento.
Ainda hoje o SAC, ou Sierra Alfa Charlie, representa isso mesmo, desaprovação e tristeza por tudo aquilo que a humanidade e todos poderíamos ter feito e nunca fizemos, sobretudo na defesa e elevação das causas comuns.
Porque hoje, distantes no tempo, constatamos que, foi assim, que passámos de jovens (de putos com 20 anos) a homens jubilados, que durante toda uma vida de trabalho, dedicação e sofrimento, continuamos a ambicionar um mundo mais justo e solidário, que não conseguimos encontrar, nem na Nossa África, nem na nossa Europa, hoje uma união a 27 países, em vez de um só, como aquele Portugal do regime de outrora.
Chamei do meu rádio e disse: «alô CT1XI aqui ZS1XP um grande abraço, passo há escuta e estou inteiramente Q.R.V. (estou inteiramente a tua disposição para qualquer serviço de QSP, de receber ou fazer serviço).
Ao que o meu amigo Mariano calmamente, mas com manifesta voz de comoção, e sem sequer me saudar, dizia: «ZS1XP Costa, aqui CT1XI, preciso muito do teu apoio, técnico e logístico, centrado na África do Sul, pois temos um velejador português de nome Manuel Martins, a navegar pelo Oceano Índico e a efectuar a primeira viagem de circum-navegação em solitário, está situado entre Cocos (Keeling Islands) e Madagáscar, saiu da Austrália há poucos dias, e sabemos que está com problemas de mau tempo. Pergunto se o podes contactar e acompanhar a partir do teu QTH.
De imediato respondi, sem hesitar, e disse: CT1XI de ZS1XP, OK Roger, o problema já é meu, eu controlo daqui (e agora já mais descontraídos) foi quando ambos nos questionámos pelas famílias e pelos anos decorridos.
Lembrámos os amigos espalhados por todo o mundo, e um pouco daquilo que nos aconteceu nos últimos 20 anos, quantos filhos nasceram. Entretanto soube que o Mariano tinha regressado a África, por diversas vezes. Eu sabia que aquele «pula» nunca iria perder e deixar de responder pelo chamamento africano. Soube afinal que tinha passado os melhores anos da sua juventude, logo em 1981, a ajudar Angola, a terra que lhe estava não na lama, mas no coração, (viria a confessar-me uns anos mais tarde, que tinha espiado as dívidas que tinha por Angola e os angolanos, na condição de antigo militar colonial, uma divida que ele assumiu e quis liquidar, emocionalmente).
Rapidamente, passamos a avaliar as condições técnicas daquilo que poderia ser a minha contribuição, em relação à viagem de circum-navegação do CASVIC, sou que o veleiro estava equipado com um pequeno transceptor de 100W, e que o EIRP, não seria nalguns casos mais do que 50W, radiados através da unidade de sintonia manual e uma antena long-wire, instalada à popa, desde o galope do mastro. A diferença de longitude era de uns 7 fusos horários, e as condições de propagação das ondas de rádio, não seriam as mais desejáveis. De imediato aprontei o meu amplificador linear de 1kW e rodei a minha antena direccional para a zona do oceano pacífico, no azimute da Austrália.
Passei algumas noites a dormir no meu «shack», com os auscultadores nos ouvidos a varrer as frequências onde o CASVIC operava, e numa dessas madrugadas, pelas 03:00 horas da manhã, hora da África do Sul, lá escutei uma emissão muito fraca, na frequência de 14.253 KHz, chamando por Lisboa, era o Manuel Martins a bordo do CASVIC.
Prontamente, liguei o amplificador, ajustei a direcção da minha antena Yagi e chamei, «alô CASVIC, aqui África do Sul, chama ZS1XP, diga como me escuta, informo que estou QRV, câmbio».
Ao que o operador do CASVIC responde: «quem me chama, transmita, porque o escuto perfeitamente…».
- «OK, o meu nome é João Costa, sou amigo do Mariano, CT1XI, que me pediu para o ajudar e acompanhar no que for necessário, informo que as condições de propagação entre Portugal e o Oceano Índico estão fechadas, assim como para as estações Ilha da Madeira, também não conseguem comunicar consigo, diga-me o que posso fazer para o ajudar, câmbio».
- «Senhor João Costa, ZS1XP, a minha posição é próxima das Ilhas de Koco Kilings. Estou
muito cansado não posso abusar das baterias, Preciso de informações de meteorologia para esta região, e avisar a minha família em Portugal que estou vivo.. K».
- «Manuel desligue o seu rádio, e volte a ligar dentro de 30 minutos, câmbio»
Naqueles anos dos anos de 1990 não dispúnhamos da Internet, os operadores amadores de rádio (radioamadores) estavam habituados a resolver coisas quase impossíveis, através do emprego de meios de rádio, e com ligações directas, então, as competências da generalidade dos operadores era muito elevada, o orgulho de se ter um indicativo de chamada e uma estação emissora do serviço de amador, era e ainda, um sinónimo de saber e de competência técnica.
Recordo que nos tempos de CR6, em Angola, todos os membros do então «S.A.C» o «Sugar Alfa Charlie» ou «Sierra Alfa Charlie» eram operadores de classe A. O S.A.C. que queria dizer «só me apetece é chorar» eram as nossa maluquices da juventude, um grupo de 6 radioamadores todos eles de Angola. Eram então, dos melhores operadores amadores, faziam os melhores «contesters da rádio», com vários recordes mundiais, alguns ainda hoje não foram superados.
Rapidamente eu virei a antena para os EUA chamando as estações desta parte do
planeta , se alguém me podia ajudar seria talvez a marinha dos Estados
Unidos.
A minha chave electrónica de telegrafia disparou no princípio da banda dos 20
metros, com o estranho pedido de informação das condições para a zona do
Indico, perto das Ilhas do Koco Kilings....Quando emiti o carácter K,
(de passar a escuta) era o fim.
Eram dezenas de estações aquelas que me respondiam ao mesmo tempo, chamei a mais forte,
quando passei novamente a escuta , todo o mundo se calou só aquela que eu
chamei, me respondia, já sabendo do meu pedido, mandou-me
aguardar... alguns minutos depois pediu para eu fazer QSY (mudar de frequência)
para uma faixa de fonia.
Milagre na frequência, estava presente uma estação com um forte sinal de mais de 20 dB
acima de S9 (muito forte), a estação estava situada e na Baia de S. Diego (Base Naval) que me dava a tão necessitada informação, então válida para as próximas 12 horas.
Voltei para a frequência de trabalho do «CASVIC» que então respondeu de novo à minha chamada.
A informação foi passada e eu prometi ao navegador estar com o equipamento ligado até ele
chegar às ilhas. Tomei o pequeno almoço e fui para o trabalho.
Agora ia fazendo parte da tripulação do "CASVIC" e do meu amigo Manuel Martins.
Depois foi a sua passagem de Lisboa até à Índia e o regresso ao Tejo no ano de 1998
para a EXP 98.
Nessa altura eu fui ter com ele, e embarquei nos Açores até ao Cais da Expo’98, corria o ano de 1998. Não mais nos vimos ou contactamos desde então.
Ontem dia 4 de Dezembro do ano da Graça de Deus de 2007, o nosso encontro voltou a acontecer o Rui Sancho numa viagem de avião por acidente meteu conversa com um tripulante, era ele, o Manuel Gomes Martins.
Foi a surpresa das surpresas, os dois falaram sobre o mar.
O Rui o levou até ao Naval de Luanda. Os telefones tocaram e as mensagens passaram
Aqui estava eu, em Portugal, na minha quinta, a «CHITACA DAS CALEMAS» onde o Manuel foi recebido não só como amigo, e, Homem do Mar.
Mas tambem como «Irmão da Costa» pois ele é um dos Fundadores da mesa da África do Sul
quando da sua passagem por Saldanha Bay na viagem que fez na sua volta pela Índia, como Vasco da Gama fez em 1497.
Bom ano de 2008 para todos vos.
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